sexta-feira, 25 de março de 2011

Museu de Angra reabre exposição de longa duração: Do Mar e da Terra…uma história no Atlântico



O Museu de Angra do Heroísmo inaugura a 30 de Março, aquando do seu 62.º aniversário, a exposição Do Mar e da Terra…uma história no Atlântico, pelas 18 horas. Trata-se da exposição de longa duração deste Museu, que constitui a sua matriz de identificação, ou seja, aquele espaço em que, num esforço de síntese e de representação, se pretende aprofundar a cultura e história da ilha e do arquipélago, através das peças mais significativas e de maior valor do seu acervo.

Assumindo-se como a principal narrativa expositiva do Museu de Angra do Heroísmo, “Do Mar e da Terra…uma história no Atlântico” desenvolve-se ao longo de quatro momentos, que vão da descoberta e povoamento das ilhas até à contemporaneidade da Região. O projecto expositivo parte do papel geoestratégico dos Açores e articula-se com os planos supra-regionais do país e do Mundo, de forma a abranger outras dimensões tidas como fundamentais para a compreensão da totalidade histórica e cultural da ilha Terceira.

No I Momento, a exposição inicia-se com um modelo de caravela armada quinhentista, como sugestão de viagem e de descoberta, detém-se no conhecimento e na descoberta das ilhas, através da cartografia, e prossegue com o ambiente insular e o povoamento, nas suas vertentes materiais e espirituais. Parte-se de uma representação do Mundo em que o real e o imaginário se misturam e entra-se num tempo e num espaço de domínio europeu em que as ilhas atlânticas são ocupadas – ilhas que não eram tais pera em elas homens poderem viver, nas palavras do degradado João Vaz, retidas no texto Conhecimento e humanização das Ilhas da autoria de Rute Gregório, que enceta as páginas do catálogo relativas a este momento. É nesta perspectiva de ocupação do espaço, que se aprofunda o tema da espiritualidade com um núcleo de Arte Sacra, em que se destaca quer a imaginária trazida pelos primeiros povoadores, quer a imaginária de produção local atribuída aos mestres da Sé de Angra, que testemunha o elevado desenvolvimento económico e cultural da época. A dimensão espiritual do povoamento encerra com uma visão, de certa forma atemporal, sobre as festas do Espírito Santo, sob a forma de registos fotográficos e fílmicos das suas vivências e sequências rituais.

Angra, espaço de projecção de dinâmicas sociais, económicas e políticas que dominam os Açores, nos séculos XVI, XVII e XVIII, transformando esta cidade num importante interposto comercial do Atlântico, ocupa o II Momento. Aqui, procurou-se, de algum modo, recriar uma representação de uma cidade em cujas ruas se concentrariam oficiais mecânicos num fervilhar de trabalho com sons e odores dos mais variados, para usar expressões de José Damião Rodrigues, no texto Angra, os Açores e o Mundo ou ainda, de acordo com o mesmo autor, uma cidade em cujo ancoradouro se juntavam navios oriundos das Índias de Portugal e de Castela, do Brasil e de África, que abasteciam a ilha de produtos exóticos e permitiam às famílias da elite e às casas religiosas adquirir mobiliário em madeiras finas, estatuária, crucifixos e relicários indo-portugueses – os mesmos que agora se expõem, lado a lado com aquele mobiliário de cuja exportação se fala e que, finalmente, se associa às magníficas caixas esgrafitadas que saíram de Angra para o mundo, no século XVII.

Ao longo do Momento que se segue, a criação da Capitania Geral é aprofundada como um dos períodos mais importantes da organização político-administrativa do arquipélago que, assente no poder absoluto do rei e num modelo centralizador, prolonga a centralidade política da Ilha Terceira face a uma realidade local que lhe é cada vez mais hostil. O que parece certo é que a fragilidade da administração portuguesa nas ilhas persistirá, independentemente das algumas marcas que tenha deixado nas mentalidades e nos hábitos, de acordo com José G. Reis Leite, responsável pela autoria do texto da Capitania Geral ao liberalismo. É, pois, nesta perspectiva de preponderância do político-administrativo que a exposição dá lugar à emergência da crise política de oitocentos, de transformação de ideários e de luta pela sucessão do poder, em que contra tudo e contra todos, a ilha vai desempenhar um papel de primeira linha no panorama nacional. A questão liberal vai, pelo menos em parte, preparar a entrada das ilhas açorianas na contemporaneidade, que estará bem patente nos estilos e gostos patenteados pela pintura, pela cerâmica e até pelo mobiliário e traje apresentados.

O IV Momento surge, por fim, com as novidades tecnológicas da viragem do século XIX, a fotografia que substitui o retrato a óleo, mas que mantém a pose, e o cinema que surpreende a todos. Chega-se, então, a um tempo já muito próximo de nós e cujas conjunturas dominantes parecem manter ainda alguma actualidade. São os problemas de uma sociedade rural e de uma economia de base agro-pastoril, as ligações difíceis ao exterior, a emigração, os conflitos mundiais, a importância geoestratégica baseada na navegação marítima que se transfere para a aeronáutica, a emergência da questão identitária e de um regime político-administrativo autonómico. Estas constantes estruturais e estas mudanças ocorridas ao longo do século XX constituem o contexto em que se apresentam alguns testemunhos ou fragmentos de histórias, tais como os objectos resultantes da presença inglesa e americana e de certas tentativas de industrialização, a Cerâmica Terceirense e outros. Factos e objectos que foram e que são interpretados não só por intelectuais e elites regionais como modos específicos de pensar, de sentir e de estar, como por todos os outros que também se sentem interpelados por este espaço sócio-histórico específico, como parte integrante de um processo de formação do contemporâneo nos Açores, a que José M. Oliveira Mendes, no texto intitulado precisamente A formação do Contemporâneo, se refere como processo de desencravamento [de] uma sociedade tradicional e rural, [que] só acontece após o 25 de Abril de 1974 e a instituição da Região Autónoma dos Açores.

Do Mar e da Terra… uma história no Atlântico constitui, assim, um dos raros espaços em que a história e a herança cultural açorianas se materializam e se devolvem ao olhar, através daqueles objectos que evocam e que tornam mais real, ao mesmo tempo, a memória de um passado e os caminhos de um futuro, como se tratasse de um ponto de partida e de chegada para a descoberta e para a compreensão da cidade de Angra, da Ilha Terceira e do Arquipélago dos Açores.

Adequada às necessidades e visões mais actuais da museografia contemporânea, nomeadamente ao nível do uso de recursos tecnológicos e de meios audiovisuais, a exposição incorpora pequenos filmes, da autoria do documentarista Brandão Lucas, que contextualizam a narrativa de cada um dos momentos temporais abordados, bem como um pequeno auditório especialmente criado para apresentação do “Documentário Terceirense”, o primeiro filme açoriano, da empresa Foto-Cinema Açores, realizado pelo terceirense António Luís Lourenço da Costa, em 1927. Além do catálogo, que incorpora textos de especialistas sobre os vários nichos epocais tratados na exposição, são ainda disponibilizados audioguias com textos bilingues.

Considerando que é unânime a ideia de que os museus desempenham um importante papel, enquanto espaços de reflexão em torno dos paradoxos e dos vazios que atravessam as sociedades contemporâneas, quer no plano institucional da construção dos discursos identitários, quer nos planos criativos e até subversivos da produção artística, da inovação tecnológica e da dinâmica social, a abertura da exposição Do Mar e da Terra… uma história no Atlântico vem, uma vez mais, confirmar o empenhamento do Museu de Angra do Heroísmo de levar a cabo a sua missão de fundamentar modos de estar e de ser colectivos, neste caso, de angrenses, terceirenses e açorianos.




GaCS/DRaC

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